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sábado, 18 de dezembro de 2010

Wikiliquidação do Império?

17/12/2010, Boaventura Sousa Santos, sociólogo português. Fonte: Esquerda.net

O importante é sabermos divulgar que muitas das decisões de que podem resultar a morte de milhares de pessoas e o sofrimento de milhões são tomadas com base em mentiras e criar a revolta organizada contra tal estado de coisas.

A divulgação de centenas de milhares de documentos confidenciais, diplomáticos e militares, pela Wikileaks acrescenta uma nova dimensão ao aprofundamento contraditório da globalização. A revelação, num curto período, não só de documentação que se sabia existir mas a que durante muito tempo foi negado o acesso público por parte de quem a detinha, como também de documentação que ninguém sonhava existir, dramatiza os efeitos da revolução das tecnologias de informação (RTI) e obriga a repensar a natureza dos poderes globais que nos (des)governam e as resistências que os podem desafiar. O questionamento deve ser tão profundo que incluirá a própria Wikileaks: é que nem tudo é transparente na orgia de transparência que a Wikileaks nos oferece.

A revelação é tão impressionante pela tecnologia como pelo conteúdo. A título de exemplo, ouvimos horrorizados este diálogo – Good shooting. Thank you – enquanto caem por terra jornalistas da Reuters e crianças a caminho do colégio, ou seja, enquanto se cometem crimes contra a humanidade. Ficamos a saber que o Irão é consensualmente uma ameaça nuclear para os seus vizinhos e que, portanto, está apenas por decidir quem vai atacar primeiro, se os EUA ou Israel. Que a grande multinacional farmacêutica, Pfizer, com a conivência da embaixada dos EUA na Nigéria, procurou fazer chantagem com o Procurador-Geral deste país para evitar pagar indemnizações pelo uso experimental indevido de drogas que mataram crianças. Que os EUA fizeram pressões ilegítimas sobre países pobres para os obrigar a assinar a declaração não oficial da Conferência da Mudança Climática de Dezembro passado em Copenhaga, de modo a poderem continuar a dominar o mundo com base na poluição causada pela economia do petróleo barato. Que Moçambique não é um Estado-narco totalmente corrupto mas pode correr o risco de o vir a ser. Que no “plano de pacificação das favelas” do Rio de Janeiro se está a aplicar a doutrina da contra-insurgência desenhada pelos EUA para o Iraque e Afeganistão, ou seja, que se estão a usar contra um “inimigo interno” as tácticas usadas contra um “inimigo externo”. Que o irmão do “salvador” do Afeganistão, Hamid Karzai, é um importante traficante de ópio. Etc., etc, num quarto de milhão de documentos.

Irá o mundo mudar depois destas revelações? A questão é saber qual das globalizações em confronto—a globalização hegemónica do capitalismo ou a globalização contra-hegemónica dos movimentos sociais em luta por um outro mundo possível—irá beneficiar mais com as fugas de informação. É previsível que o poder imperial dos EUA aprenda mais rapidamente as lições da Wikileaks que os movimentos e partidos que se lhe opõem em diferentes partes do mundo. Está já em marcha uma nova onda de direito penal imperial, leis “anti-terroristas” para tentar dissuadir os diferentes “piratas” informáticos (hackers), bem como novas técnicas para tornar o poder wikiseguro. Mas, à primeira vista, a Wikileaks tem maior potencial para favorecer as forças democráticas e anti-capitalistas. Para que esse potencial se concretize são necessárias duas condições: processar o novo conhecimento adequadamente e transformá-lo em novas razões para mobilização.

Quanto à primeira condição, já sabíamos que os poderes políticos e económicos globais mentem quando fazem apelos aos direitos humanos e à democracia, pois que o seu objectivo exclusivo é consolidar o domínio que têm sobre as nossas vidas, não hesitando em usar, para isso, os métodos fascistas mais violentos. Tudo está a ser comprovado, e muito para além do que os mais avisados poderiam admitir. O maior conhecimento cria exigências novas de análise e de divulgação. Em primeiro lugar, é necessário dar a conhecer a distância que existe entre a autenticidade dos documentos e veracidade do que afirmam. Por exemplo, que o Irão seja uma ameaça nuclear só é “verdade” para os maus diplomatas que, ao contrário dos bons, informam os seus governos sobre o que estes gostam de ouvir e não sobre a realidade dos factos. Do mesmo modo, que a táctica norte-americana da contra-insurgência esteja a ser usada nas favelas é opinião do Consulado Geral dos EUA no Rio. Compete aos cidadãos interpelar o governo nacional, estadual e municipal sobre a veracidade desta opinião. Tal como compete aos tribunais moçambicanos averiguar a alegada corrupção no país. O importante é sabermos divulgar que muitas das decisões de que pode resultar a morte de milhares de pessoas e o sofrimento de milhões são tomadas com base em mentiras e criar a revolta organizada contra tal estado de coisas.

Ainda no domínio do processamento do conhecimento, será cada vez mais crucial fazermos o que chamo uma sociologia das ausências: o que não é divulgado quando aparentemente tudo é divulgado. Por exemplo, resulta muito estranho que Israel, um dos países que mais poderia temer as revelações devido às atrocidades que tem cometido contra o povo palestiniano, esteja tão ausente dos documentos confidenciais. Há a suspeita fundada de que foram eliminados por acordo entre Israel e Julian Assange. Isto significa que vamos precisar de uma Wikileaks alternativa ainda mais transparente. Talvez já esteja em curso a sua criação.

A segunda condição (novas razões e motivações para a mobilização) é ainda mais exigente. Será necessário estabelecer uma articulação orgânica entre o fenómeno Wikileaks e os movimentos e partidos de esquerda até agora pouco inclinados a explorar as novas possibilidades criadas pela RTI. Essa articulação vai criar a maior disponibilidade para que seja revelada informação que particularmente interessa às forças democráticas anti-capitalistas. Por outro lado, será necessário que essa articulação seja feita com o Foro Social Mundial (FSM) e com os media alternativos que o integram. Curiosamente, o FSM foi a primeira novidade emancipatória da primeira década do século e a Wikileaks, se for aproveitada, pode ser a primeira novidade da segunda década. Para que a articulação se realize é necessária muita reflexão inter-movimentos que permita identificar os desígnios mais insidiosos e agressivos do imperialismo e do fascismo social globalizado, bem como as suas insuspeitadas debilidades a nível nacional, regional e global. É preciso criar uma nova energia mobilizadora a partir da verificação aparentemente contraditória de que o poder capitalista global é simultaneamente mais esmagador do que pensamos e mais frágil do que o que podemos deduzir linearmente da sua força. O FSM, que se reúne em Fevereiro próximo em Dakar, está precisar de renovar-se e fortalecer-se, e esta pode ser uma via para que tal ocorra.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Entrevista: Novo Ministra da Justiça - José Eduardo Cardozo.

Vale a

A entrevista de José Eduardo Cardoso
Vale apenas comentar sobre a entrevista do futuro Ministro da Justiça publicada hoje no Estadão. José Eduardo Cardozo(12/12/2010) já é colocado em "lado oposto" ao ministro Jobim e mostra que a Polícia Federal não terá um aliado como chefe.

"Temos de parar de pensar em semideuses como gestores''

Cardozo evita polêmica com Jobim, que defende presença ostensiva do Exército nos morros do Rio, e diz que o crime organizado não sobrevive sem a corrupção de autoridades

le="margin-top: 0.5em; margin-bottom: 0.9em;">Vera Rosa
Debruçado sobre o Livro da Transição, o futuro ministro da Justiça, José Eduardo Martins Cardozo, prega o fim das disputas entre a Polícia Federal e o Exército, além de um pacto entre o Executivo, Legislativo e Judiciário para derrotar o crime organizado e o narcotráfico. "O crime organizado não sobrevive sem a corrupção de autoridades estatais", diz ele.

Para Cardozo, no entanto, o Exército deve entrar em áreas de conflito apenas em "situações excepcionais". Na tentativa de evitar polêmica com o ministro da Defesa, Nelson Jobim - defensor da presença ostensiva das Forças Armadas nos morros do Rio -, ele garante que as divergências serão arbitradas pela presidente eleita, Dilma Rousseff. "Temos de parar de pensar em semideuses como gestores", insiste.

Em uma hora e meia de entrevista ao Estado, com o celular tocando sem piedade, Cardozo elogiou o trabalho da Polícia Federal, mas disse não ter simpatia por operações com ares de espetáculo, que podem provocar "linchamentos sociais". Não foi só: criticou a legalização dos bingos, que, no seu diagnóstico, permite a lavagem de dinheiro.

Secretário-geral do PT, mentor do Código de Ética do partido e relator do projeto da Ficha Limpa, Cardozo observou que a lei não poderia ter efeito retroativo. Do grupo Mensagem ao Partido, que se opõe ao ex-chefe da Casa Civil José Dirceu, ele afirmou, ainda, que o réu do escândalo do mensalão foi cassado "sem provas" pela Câmara.

Integrante do time de coordenadores da campanha de Dilma - batizado por ela de "três porquinhos" -, Cardozo revelou que se identifica mais com o personagem Cícero, na fábula infantil. "Às vezes, construo casas de palha", admitiu, rindo.

Qual será sua prioridade no Ministério da Justiça?

A partir das diretrizes traçadas pela presidente eleita, a segurança pública e o combate ao crime organizado serão o eixo prioritário do governo, ao lado de Educação e Saúde.

O ministro Nelson Jobim defende a presença ostensiva das Forças Armadas no combate ao crime organizado e ao narcotráfico, não só nas fronteiras, mas também no auxílio a governos estaduais. O sr. concorda?

A segurança pública e o combate ao crime organizado exigem um somatório de forças. Do ponto de vista repressivo, acho que em situações excepcionais, como no Rio, é perfeitamente possível ter o envolvimento das Forças Armadas. A Polícia Federal e o Exército não podem atuar como órgãos dissociados.

Mas hoje vivem às turras. Como resolver isso?

Chegou a hora de buscarmos ações para eliminar essa disputa, que é estéril. A questão é de Estado e assim deve ser tratada. É sobre isso que quero dialogar não só com o ministro Jobim, mas com governadores, prefeitos secretários de Segurança, Ministério Público, Judiciário...

Em que consiste o pacto nacional de segurança que o sr. propõe?

As competências na questão da segurança pública são estaduais. Mas é preciso uma articulação envolvendo os três Poderes e todas as unidades da Federação em políticas preventivas e repressivas. No Rio, houve competente ação do governo, mas o apoio da população foi fundamental. O crime organizado tem de ser derrotado também pela opinião pública. Temos de perder a mania de pensar em semideuses como gestores. As pessoas precisam perder a vaidade e perceber que têm de somar para resolver problemas, superando divergências ideológicas e políticas.

O sr. está falando do ministro Jobim ou do governador Sérgio Cabral?

Estou falando de todos nós.

Muita gente diz que o sr. vai acabar trombando com o ministro Jobim...

Meu Deus!!! (risos) O Jobim é uma pessoa pela qual eu tenho carinho e admiração. Podemos ter a opinião que desejarmos, mas uma pessoa decide. E ela se chama Dilma Rousseff.

Quanto tempo o Exército deve permanecer no Rio?

O necessário. Não gosto de exercício de futurologia.

A Polícia Federal é, muitas vezes, alvo de críticas por cometer abusos. Como o sr. vai administrá-la?

O Estado tem o dever de investigar delitos e puni-los, mas todos devem ser tratados com seus direitos. A espetacularização das ações da PF pode provocar linchamentos sociais inaceitáveis. Se desvios assim ocorrerem, agirei com rigor.

Um dos principais instrumentos da PF é o Sistema Guardião, máquina de grampos telefônicos. O sr. concorda com esse método de ação?

A interceptação telefônica só pode ocorrer nos casos que a lei autoriza, sob determinação judicial. Toda vez que houver interceptação fora do que a lei determina, os responsáveis têm de ser punidos.

Como o sr. vai combater a corrupção e o crime do colarinho branco?

O crime organizado não sobrevive sem a corrupção de autoridades estatais, de todos os níveis, de todos os poderes, que muitas vezes guardam conexão com o crime do colarinho branco. Dificilmente um crime se organiza em larga dimensão se não houver a conivência de parte do aparelho do Estado. Então, o enfrentamento do crime organizado passa pelo enfrentamento da corrupção. Eu não culparia juízes pela morosidade da Justiça, que gera sensação de impunidade. Culpo o sistema, que precisa ser corrigido.

A Câmara pôs em pauta o polêmico projeto de legalização dos bingos. O sr. é favorável?

Eu, como deputado, me manifestei contra. Em última instância, traz mais malefícios do que benefícios e permite a lavagem de dinheiro.

O presidente Lula deve manter ou extraditar o italiano Cesare Battisti? Externei da tribuna da Câmara minha opinião (pela concessão de refúgio a Battisti). Nesse momento, seria deselegante falar sobre isso.

Ao relatar o projeto de lei da Ficha Limpa, o sr. recebeu muita pressão?

A lei ensejou discussões de interpretação e ouvi muitas reclamações. De qualquer forma, pela primeira vez se discutiu critérios éticos para que as pessoas pudessem ou não ser eleitas. Na minha percepção, a lei não poderia ter eficácia retroativa e não deveria atingir políticos que renunciassem antes (ao mandato). Não foi a decisão do Judiciário. Mas não sou dono da verdade.

Numa entrevista à revista Veja, em 2008, o sr. chegou a dizer que o mensalão existiu, mas depois alegou que foi mal interpretado. O sr. recuou por interferência do Planalto?

Eu não recuei nenhum milímetro. Não disse isso. Sempre questionei a palavra mensalão. Foi um rótulo que teve efeito midiático. Deputados do PT não receberiam mensalidade para votar em projetos do governo. O que houve foi uma situação ilegal de despesas não contabilizadas. A acusação de desvio de recursos públicos nunca foi provada.

O sr. é favorável à anistia para o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, cassado pela Câmara?

O julgamento da Câmara em relação a José Dirceu foi político. Não existiam provas efetivas de que ele tivesse cometido os atos pelos quais foi acusado. Foi uma condenação indevida. Há um processo em curso no Supremo Tribunal Federal. Acho que, só depois do julgamento, essa discussão da anistia deverá ser colocada ou não.

O sr. não se candidatou a deputado, alegando não se sentir confortável em entrar numa campanha na qual o dinheiro decidia a eleição. Já sabia que poderia ser ministro?

Muito antes de ser convidado para a coordenação da campanha de Dilma, apresentei publicamente minhas razões para não disputar a eleição. Certa vez, o deputado Ibsen Pinheiro disse o seguinte: "Eu continuo encantado com o Parlamento; o que não gosto é de ser candidato." Faço minhas as palavras dele.

O problema é captar recursos?

São vários problemas, mas financiamento público é fundamental. Imaginar que numa campanha nunca exista dinheiro desviado dos cofres públicos é ser ingênuo. O atual sistema gera uma relação complicada entre quem doa e quem recebe.