Um Socialismo para o Século XXIFrançois Houtart
*Adital -
Introdução
O socialismo é um projeto, antes de ser um conceito. Por essa razão, é necessário abordar o conteúdo como passo preliminar para a utilização da palavra. De fato, o que é o socialismo hoje? Trata-se do stalinismo, do maoísmo, de Pol Pot, da social-democracia, da terceira via? Estamos ante a plena ambigüidade, o que exige um novo quadro de reflexão.No entanto, há uma grande urgência frente à destruição social e ambiental provocada pelo modelo econômico contemporâneo. A hegemonia global do capitalismo, em sua forma neoliberal, não somente foi edificada sobre novas bases materiais (as tecnologias da informação e da comunicação), mas também permitiu universalizar a subordinação do trabalho al capital ("subsunção", segundo Carlos Marx). Atualmente, não somente se trata de uma subordinação real, isto é, dentro do processo mesmo de produção, a través do salário, mas também formal, ou seja, por meios financeiros (preços das matérias primas e dos produtos agrícolas, dívida externa, paraísos fiscais, fiscalização interna que promove a riqueza individual) ew por meios jurídicos (normas das organizações internacionais, como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio).Este último tipo de subordinação afeta a todos os grupos humanos tanto pela destruição ambiental como pela submissão à lei do valor. Hoje em dia, os povos indígenas estão afetados em sua possibilidade de sobrevivência pela exploração dos bosques ou pela destruição da biodiversidade; os pequenos camponeses são as primeiras vítimas da privatização da saúde, da água, da eletricidade; os pequenos camponeses são deslocados pelas empresas transnacionais do agronegócio. De fato, a vida da humanidade em seu conjunto está sendo agredida. As conseqüências para a sociedade são profundas porque esse processo agudiza as contradições dentro de todas as relações entre indivíduos, não somente pela desigualdade econômica e social crescente, mas pelo aumento dos conflitos de gênero, de raças ou de castas. Por essas razões, o projeto deve começar por uma deslegitimação clara e radical do capitalismo, em sua lógica mesma e em seus aspectos concretos em cada sociedade. A consciência de que não se pode humanizar o capitalismo constitui a base de um novo projeto concreto. A esse propósito, podemos propor níveis de reflexão: o nível da utopia (que sociedade queremos?), os meios e, finalmente, as estratégias. Trataremos de aplicar esses três níveis aos vários componentes da realidade humana: ecológicos, econômicos, políticos e culturais e de propor, de maneira muito sintética, uma série de hipóteses como base de discussão.1. Os objetivos ou a utopiaQue sociedade queremos? Essa pergunta pode parecer muito geral, um conjunto de idéias abstratas, um sonho. Porém, não seríamos seres humanos se suprimíssemos a capacidade de sonhar. Queremos viver em uma sociedade humana de cooperação e de paz. Isso significa que não queremos viver em um mundo de pura competitividade e de agressão. Desde seu início, tal perspectiva introduz uma contradição com a sociedade neoliberal. Para definir de maneira mais concreta o que podemos chamar a utopia, pode-se distinguir quatro objetivos ou princípios, segundo as já citadas dimensões ecológica, econômica, política e cultural.1) Prioridade de uma utilização renovável dos recursos naturaisExiste uma simbiose entre a natureza e o ser humano. A natureza é fonte é fonte de vida (a pachamama, terra-mãe, como dizem os povos indígenas da América do Sul). Não se pode agredi-la, nem destruí-la sem atentar contra a vida humana. A natureza não pode ser explorada em função de uma racionalidade puramente instrumental, característica do tipo de modernidade vinculada econômica e culturalmente com o capitalismo. Isso resultaria na destruição progressiva da natureza. O "grito da terra", como escreve Leonardo Boff, chama-se desertificação, deterioro do clima, gripe aviar, AIDS...Esse princípio da prioridade da utilização renovável significa o rechaço a modos de produção e de atividades que destroem de maneira irreversível o ambiente natural. O uso de recursos não renováveis será o objetivo de uma gestão coletiva, assegurando sua racionalidade. No entanto, esse princípio é somente uma parte da realidade e deve entrar em2) Predomínio do valor de uso sobre o valor de trocaEssa distinção, feita por Carlos Marx, é útil para pensar o futuro. O valor de uso é o que contribui para a qualidade da vida humana em todas suas dimensões. O valor de troca é o mercado, que tem uma função subordinada ao valor de uso. No entanto, na lógica do capitalismo, o mercado domina hoje não somente a atividade econômica, mas também toda a organização coletiva da vida humana. Para o capitalismo, não existe valor econômico se o trabalho, os bens e os serviços não se transformam em mercadorias. É o que se chama a imposição da lei do valor que, segundo Franz Hinkelammert, significa o fim do sujeito. Os seres humanos estão submetidos a essa lei que invadiu a realidade social submetendo a humanidade em sua totalidade à lógica do capitalismo. É por isso que Karl Polanyi, economista estadunidense historiador do capitalismo, conclui que é necessário reinserir a economia na sociedade.3) Participação democrática em todos os setores da vida coletiva. A participação democrática, isto é, o poder de decisão do sujeito humano, pode ser limitado ao setor político. Nesse sentido, pode-se dizer que toda a realidade é política, começando pela economia. O princípio da participação democrática tem que ser aplicado a todos os níveis da vida humana coletiva, do local ao global.4) Interculturalidade. Todas as culturas participam na vida cultural e espiritual da humanidade. Nenhuma delas pode ser eliminada ou marginalizada. Isso inclui todas as expressões culturais, o direito, a ciência, as religiões e as espiritualidades. As transformações que derivam de intercâmbios, de enriquecimento mutuo são bem-vindas porque a cultura não é estática.Sobre a base dos quatro princípios expostos propõe-se o problema dos meios.2. Os meiosNão basta afirmar princípios. Construir outra sociedade significa aplicar meios para que eles possam tornar-se realidade.1) A relação com a naturezaPara levar a cabo o primeiro princípio de predomínio de uma utilização renovável podemos propor três meios principais. O primeiro é a apropriação pública dos recursos naturais essenciais para a vida, como a água, as sementes, o ar. Esses recursos constituem o "patrimônio da humanidade" e devem escapar da lei do valor, tal como está definida pelo sistema econômico capitalista.A revalorização da agricultura camponesa é outro meio necessário. Trata-se de lutar contra a concretização produtivista da terra ou dos produtos agrícolas em mãos de empresas transnacionais que destroem a natureza, sem falar dos desastres sociais e de promover uma agricultura orgânica. Em terceiro lugar, a tarefa fundamental de regeneração da atmosfera, dos solos, das águas e, finalmente, do clima.2) O predomínio do valor de uso sobre o valor de trocaExistem vários meios para esse predomínio em específico. Somente queremos assinalar alguns deles:- Promover a produção orientada à maioria das populações com a utilização de instrumentos públicos, o que se opõe ao modelo de desenvolvimento atual, que favorece um crescimento econômico espetacular de somente 20% da população. Isso é a conseqüência da lógica do capitalismo, que necessita gerar fortes poderes de compra de uma minoria para absorver uma produção sofisticada, contribuindo para a acumulação do capital.- A introdução de elementos qualitativos no cálculo econômico, como o bem-estar (a qualidade de vida), o entorno ecológico, a segurança alimentar. As decisões serão muito diferentes se forem considerados esses elementos nos cálculos dos custos de produção e de intercâmbio.- Limitar a influência do capital financeiro mediante um imposto sobre os fluxos internacionais, a abolição dos paraísos fiscais e do segredo bancário e a supressão da dívida externa dos povos do Sul.- Abolição das patentes em sua forma atual e adaptação do direito de autor para evitar o monopólio das transnacionais.- Revalorização da empresa como lugar de trabalho comum com fins sociais e não como fonte de riqueza para os acionistas.- Reconhecimento e valorização dos empregos não reconhecidos (mulheres no lar) ou desvalorizados (serviço social, serviço de saúde) e criação de empregos para setores qualitativos de interesse coletivo (melhoramento da qualidade de vida, serviços pessoais etc).- Constituição de um seguro social generalizado sob controle público.- Revalorização do serviço público como serviço à coletividade e não como atenção a "clientes".3) O princípio da democraciaA democracia não é somente um fim, mas também um meio. Nesse sentido, deve-se estender a democracia representativa a todos os níveis da atividade coletiva, incluindo oi setor econômico. No entanto, necessita-se também a promoção da democracia participativa ou direta como incremento do controle popular nos mesmos setores. Não se trata da dimensão territorial (povoados, bairros, aldeias), mas também das empresas e das administrações.4) O princípio da interculturalidadeOs meios nesse setor são também diversos, com prioridade ao seguinte:-Afirmar e concretizar o direito dos povos frente ao direito dos negócios, o que significa uma mudança fundamental da filosofia dos organismos internacionais, financeiros e comerciais.- Proteção das culturas por medidas adequadas nos diversos setores de suas expressões.- Socialização dos resultados da ciência, sem monopólio industrial ou particular.- Afirmação da laicidade do Estado, como base do diálogo filosófico e espiritual e do ecumenismo.3. As estratégiasPara poder aplicar os meios suscetíveis de concretizar os princípios, há vários níveis de estratégias.- Deslegitimar o capitalismo como expressão de uma modernidade desumanizante, o que significa a utilização de todos os espaços possíveis para o desenvolvimento de um pensamento crítico nos setores da economia, da ecologia, da política e da cultura. Nesse sentido, os fóruns sociais têm cumprido um papel importante: o desenvolvimento progressivo de uma consciência coletiva.- Acelerar a criação de atores coletivos em nível global através de redes de resistência (um exemplo é a Via Campesina).- Renovar o campo político da esquerda, com a convergência de várias organizações políticas (não se pode pensar em um partido único detentor de toda a verdade) e a centralidade da ética nas práticas políticas.- Promover a emergência de um novo sujeito histórico, que não estará somente construído pelos trabalhadores assalariados, mas por todos os grupos atingidos em sua vida pelo sistema capitalista: pequenos camponeses, mulheres, povos autóctones etc.- Buscar a centralidade da ética como atitude coletiva e individual, em coerência com a utopia, o que implica uma institucionalizaçã o dos processos sociais e políticos como base dos comportamentos individuais e uma redefinição permanente dos aspectos concretos da ética, com a contribuição de todos.Podemos concluir que se isso é o que chamamos de socialismo, trata-se de um projeto profético e construtor, capaz de contradizer a "barbaridade" e de traduzir em um projeto pós-capitalista a defesa da dignidade humana e do amor ao próximo.[Colombia Plural/Inestco.Tradução: ADITAL]*
Sociólogo e teólogo. Tem mais de quarenta livros publicados, entre eles: Sociología da religião e Mercado e religião
Nenhum comentário:
Postar um comentário